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quinta-feira, 24 de julho de 2008

CIRINEU...


"A manhã apenas despertara e o homem se levantou..." Na tristeza com que se sentia envolvido, olhou para a filha doente, que gemia no leito pobre. A esposa dormia e ele se preparou para sair antes que ela despertasse com o mau humor habitual. Seu rumo era o mercado, onde ele recolhia os frutos desprezados por aqueles que têm em demasia e desconhecem a dor do estômago vazio. Um movimento inesperado, no entanto, lhe chamou a atenção. Eram gritos e muita correria. O povo se acotovelava formando um cortejo barulhento. Soldados da Roma dominadora e audaciosa conduziam um condenado à morte. O homem parou a observar aquela cena e pensou que aquele prisioneiro era mais infeliz do que ele próprio. As suas dores eram apenas morais: doíam por dentro. Mas aquela criatura se apresentava machucada, sem forças e carregava sobre os ombros um madeiro bruto e pesado. Seus passos eram vagarosos, como num compasso de sinfonia fúnebre. Arcado, a túnica que vestia se arrastava pelo chão, embaraçando-lhe os pés, dificultando-lhe, ainda mais, o caminhar. O cireneu estava extático. O homem estava sendo conduzido para o terrível suplício da cruz. Era sim, muito mais infeliz que ele próprio. Nisto, a voz áspera de um dos soldados lhe ordenou auxiliar o condenado que caíra. Não que o soldado se condoesse da sua dificuldade. É que tinha pressa de se desvencilhar daquela tarefa. O cirineu foi praticamente jogado para debaixo daquela madeira bruta, cheia de farpas. Colocado ombro a ombro com o condenado suspendeu o peso. Sentiu uma dor profunda nos ombros e o olhar daquele "condenado" penetrou fundo na sua alma. "Eram dois olhos de luz estampados numa face de sofrimento." Jamais o cireneu esqueceria aquele olhar. A dor do ombro aumentava. Logo adiante, o prisioneiro voltou a tropeçar e cair e as chicotadas da brutalidade o fizeram levantar-se. Um pouco mais de tempo e o cireneu livrou-se do peso. Agora o madeiro se transformara na cruz erguida para crucificar o condenado. Aquele homem de Cirene, conhecido como cireneu, aguardou que a morte do crucificado se consumasse. Algo nele o atraía, magnetizava-o. Quando tudo terminou foi para casa e, porque chegou de mãos vazias, a esposa o repreendeu. Ele não revidou. Uma paz diferente tomava conta dele. A filha veio correndo e o abraçou: Estou boa, papai! O homem recordou aqueles dois olhos azuis que agradeceram seu auxílio, sem nada dizer. Um perfume sem igual penetrou o lar pobre. A mulher se enterneceu. Uma delicada e sutil presença podia ser sentida pelos três. A vida do cireneu se transformou. Apesar das lutas e dissabores, nunca mais o fantasma do desespero fez morada em sua casa. Curioso, no dia seguinte, foi perguntar a respeito da identidade do condenado. Descobriu que ele se chamava: Jesus de Nazaré. Que Ele entre na sua casa ainda hoje, ainda que como um perfume, transformando a sua vida para sempre.
Paulo Roberto Gaefke

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