Outro dia, uma
amiga se queixou ao telefone: “Tenho 27 anos e descobri
que, até agora, tenho me alimentado de migalhas”. Falei qualquer
coisa banal & consoladora, como “a vida é assim mesmo, paciência” – e
desliguei. Só não desliguei a cabeça: a frase ficou dias dando
voltas dentro dela, Até que, não lembro bem como, de algum lugar de dentro de
mim veio a resposta que não cheguei a dar à minha amiga: “Mas será que isso que
você chama de migalhas não será, afinal, o próprio pão?”
Fiquei todo
enredado num pensamento mais ou menos assim: aos 15anos, você
espera um bolo coberto de chocolate, recheado de frutas; aos 25,
você até dispensa o recheio de frutas, mas ainda espera a cobertura de
chocolate; aos 35 – ah, um pão doce mesmo serve; aos
45, pode ser pão comum, desses de água e sal, desde que fresquinho; aos
55, o mesmo pão, só que não tem muito importância se dor amanhecido – e
assim por diante, até chegarmos às migalhas. Que, se você tiver uma
boa cabeça, pode receber como se fosse uma daquelas tortas Martha
Rocha (uma fatia para quem lembrar das tortas Martha Rocha, famosas nos
anos 50).
A passagem do tempo traz humildade e reduz o apetite? Não afirmo nada, só pergunto, porque não tenho certeza. Talvez por ter andado lendo os dois romances que Doris Lessing esecreveu sob o pseudônimo de Jane Somers (O Diário de Uma Boa Vizinha e Se os Velhos Pudessem), andei pensando também na velhice. Neste jornal não se pode escrever palavrão – mas você já percebeu que muitos jovem dizem velha como se dissessem, desculpem, mulher de vida airada ou ladra? Como se a velhice fosse um crime e uma vergonha.
Os dias passaram,
eu pensei em Rita Lee. Não ouvi o disco novo de Rita, não tenho
nada a dizer sobre ele. Mas Rita ficou furiosa com uma crítica escrita sobre o
disco e, ao que parece, especialmente com uma maldadezinha sobre sua suposta
“menopausa criativa”. Fica assim: quem acusa coloca-se na posição de
“jovem-por-dentro-de tudo”. Acaba virando um joguinho meio lamentável de bom
& mau, mocinho & bandido,inocente & culpado. Por trás de
tudo, a suprema ofensa: ser chamado de VELHO.
Então morre Rita
Hayworth (maravilhosa Rita, sem a qual Marilyn Monroe talvez não
tivesse existido), há anos esquecida. Em todos os arquivos rebuscam-se fotos e
trechos de filmes da flamejante Gilda – e fotos da mulher esplêndida de 20, 25
anos, são colocadas lado a lado de fotos da velha horrenda de 60, doente e
decadente. O subtexto é: o jovem é belo, o velho é feio. O jovem
está perto da vida, o velho está perto da morte. E a velhice, como a morte, é
feia e suja. Será?
Enquanto isso, a
vida de cada um corre sobre os trilhos do tempo, separadamente mas em direção a
um destino igual para todos, e no mesmo ritmo implacável daquele poema de
Manuel Bandeira:café-com-pão, café-com-pão. Penso nos velhinhos como Mário
Quintana, cheios do poder discreto de conseguir contemplar de longe a
juvenil palhaçada nossa de cada dia, à espera desses resplandescentes bolos
cobertos de chocolate, recheados de frutas. E que só existem no sonho.
No real, são as migalhas.
Rita, a Hayworth,
gira no ar sua luva negra e canta: “Put the blame on mame, boy” – porque ela
não preparou você para a velhice, eu acrescento. Seguro devagar o novo livro de Adélia
Prado, O Pelicano, leio e releio um poema chamado Objeto de
Amor (que não posso transcrever aqui: este jornal não publica
palavrão), e acho que eu compreendo quando ela diz: “Quanto a mim dou graças/
pelo que agora sei/ e, mais que perdoo, eu amo”. Foi Adélia, mulher do
povo, quem afirnou também num poema mais antigo: “Quarenta anos: não quero
a faca nem o queijo/ quero a fome”. Eu também: bem-vindas as migalhas que, se
Deus quiser, virão.
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