A barata é a mais lídima das aquisições
democráticas do mundo. Quase toda a casa a possui. Aos pobres lhes cabe melhor
quinhão desses insetos, muito embora o Sr. Guinle não possa se queixar pois o
Copacabana também as tem apesar de todo o DDT.
Pertencendo à família das
BLATÍDEAS, muito conhecida nos buracos de rodapés, cantos de estantes, fundos
de arquivos e de gavetas, as baratas têm hábitos próprios interessantíssimos
com os quais me familiarizei nos meus longos anos de pertinaz contato com
arcanos e alfarrábios.
Para se lidar com baratas há quem acredite em
inseticidas e baraticidas. Como em tudo mais, acredito em psicologia. Para se
aplicar a psicologia é preciso um certo método e uma vasta disciplina. Vejamos.
Encontra-se a barata. Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de
energia. Em geral ela nos procura. E mais em geral ainda ela vem ao meio de
nossos dedos quando pegamos aquela pilha de livros que estava embaixo da
escada. No momento em que sentimos a barata presa em nossos dedos um sentimento
de horror inaudito corre nossa espinha.
Largamos livros, agitamo-nos
furiosamente, batemos no chão, nos móveis e nos livros com o primeiro pano ou
jornal que se nos depara, mas, a essa altura, a barata já estará longe,
escondida numa das 365 mil páginas dos 870 livros que espalhamos no chão. Como
encontrá-la? Eis o problema. Esse problema, depois de acalmados nossos nervos e
esfregadas nossas mãos com sabão e bastante álcool, é que procuramos resolver.
Existe,
para se pegar uma barata, dois processos distintos. Um é chamar a empregada e
dizer: "Tem uma barata aí! Quero isso bem limpo!" e virar
covardemente as costas.
Dessa atitude pode resultar que a barata atinja um
extraordinário grau de longevidade, pois a empregada passará um pano nos livros
e jogará por cima deles um pouco de DDT, dando-se por satisfeita. A barata
também. E daqui a seis meses, quando você for pegar aquele velho exemplar de
Balzac, terá a desagradável surpresa de ver, à página 276, olhando-o com
aqueles olhos brejeiros e aquelas antenas irônicas que lhe são próprios, a
mesma barata que você tinha condenado à morte. Vocês fitar-se-ão demoradamente.
Ela continuará baloiçando as antenas.
E você, depois de um segundo de inércia,
saltará para o ar, jogará o livro para o outro lado e berrará femininamente.
Pois eis que as baratas têm o extraordinário poder de nos afeminar a todos,
afirmativa essa que se aceitará sem contestação se se atentar para o grande
número de baratas que há em nossos teatros. Portanto não se deve virar as
costas a uma barata, como fazem os elementos da ribalta, mas sim enfrentá-la
masculamente.
Para isso precisamos, antes de mais nada, saber se a barata é uma
BLATÍDEA comum ou se é uma PERIPLANETA AMERICANA, ou, em linguagem menos
científica, uma dessas baratas que voam. Se é dessas aconselho o leitor a
desistir de qualquer pretensão máscula, arrumar as malas, fechar as portas de
sua casa e entrar para o Teatro.
Agora, se é das outras, sempre há recursos:
1 — Pegue um Correio da Manhã bem dobrado, deixando
à mostra o artigo de fundo. Sacuda os livros e espere, trepado numa cadeira.
Atente, sobretudo para o estilo de bater quando a barata surgir. Lembre-se: o
estilo é o homem.
2 — Quando a barata surgir bata de uma vez. Não
durma na pontaria. Ela normalmente para um pouquinho, para sondar o ambiente cá
de fora e confrontá-lo com a literatura em que vive metida. Esse o momento de
atacar.
3 — Trate de verificar se o inseto em que você está
batendo é uma barata ou um barato. Nunca se esqueça: o barato sai caro.
4 — Nunca aproxime e afaste o jornal para fazer
pontaria. As baratas sabem muito bem o que as espera quando sentem esse
ventinho, quando você bater de verdade ela já terá embarcado para a Europa.
5 — Não tenha pena de bater. Bata firme, forte,
decididamente. É a vida dela ou a sua. Se você não a matar terá que passar a
existência inteira alimentando-a a inseticida.
6 — Não se importe com as coisas que o cercam.
Afinal de contas que são meia dúzia de copos partidos, um tapete manchado, dois
livros com as páginas rasgadas e uma perna de cadeira quebrada se você
conseguiu eliminar uma barata?
7 — Se falhar, só a paciência lhe dará outra oportunidade.
A barata não lhe dará outra tão cedo, enquanto permanecer em sua memória o
trauma da pancada que quase lhe tirava a vida. Não adianta você sacudir livro
após livro porque se recusará a aparecer. Agarrar-se-á às páginas e, se cair ao
chão, correrá rapidamente, escondendo-se por trás do guarda-roupa.
8 — Não se deixe levar pela vaidade. Às vezes você
atinge uma barata de leve e ela vira-se de barriga para o ar agitando as
perninhas ininterruptamente, com a expressão de quem está dando uma gargalhada,
achando você engraçadíssimo. Isso poderá lisonjeá-lo, mas não a poupe por esse
motivo.
9 — Às vezes elas tentam outro truque sentimental.
Atingidas de leve elas vão se arrastando tristemente, de vez em quando olhando
para você com um olhar que lhe dilacera o coração, como quem diz: "Seu
malvado, viu o que você fez?" Antes de começar a chorar bata até matar.
Depois chore.
10 — De seis em seis meses faça um teste consigo
próprio para ver se você está mais desbaratador do que no semestre anterior. Se
a resposta for negativa não esmoreça. Continue lutando até que possa, como nós,
cobrar caro pelas lições administradas. E essa é nossa última recomendação:
cobre sempre caro pelos seus conselhos nesse setor. Não se barateie!
Millôr Fernandes, ao que parece, padece do mesmo
horror a baratas que muitos de nós têm.
Texto extraído do livro
"Lições de Um Ignorante", José Álvaro Editor, Rio de Janeiro, 1967,
pág. 113.
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